Locomotiva a vapor
(séc. XIX)
a partir da Estação da Gare do Oriente
(séc. XXI)
GUERRA JUNQUEIRO
(1850 - 1923)
[Poeta, Escritor, Jornalista, Político e Pensador]
A BÊNÇÃO DA LOCOMOTIVA
A obra está completa. A máquina flameja
desenrolando o fumo em ondas pelo ar.
Mas antes de partir, mandam chamar a Igreja,
que é preciso que um bispo a venha batizar.
Como ela é com certeza o fruto de Caim,
a filha da razão, da independência humana,
botem-lhe na fornalha uns trechos de latim,
e convertam-na à fé católica romana.
Devem nela existir diabólicos pecados,
porque é feita de cobre e ferro, e estes metais
saiem da natureza, ímpios, excomungados,
como saímos nós dos ventres maternais !
Vamos, esconjurai-lhe o demo que ela encerra,
extraí a heresia do aço lampejante !
Ela acaba de vir das forjas d'Inglaterra,
e há de ser com certeza um pouco protestante.
Para que o monstro corra em férvido galope,
como um sonho febril, num doido turbilhão,
além do maquinista é necessário o hissope
e muita teologia... além d'algum carvão.
Atirem-lhe uma hóstia à boca famulenta,
preguem-lhe alguns sermões, ensinem-lhe a rezar,
e lancem na caldeira um jarro d'água benta,
que com água do céu talvez não possa andar.
Poema: A Benção da locomotiva, in "A Velhice do Padre Eterno", de Guerra Junqueiro - 1885
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