RETRATO DA AMARGURA
ANTÓNIO NOBRE
António Pereira Nobre
POETA PORTUGUÊS
[Porto, 16/81867 - Foz do Douro, 18/3/1900]
>o<
Certa Velhinha
1
Além, na tapada das Quatorze Cruzes,
Que triste velhinha que vae a passar!
Não leva candeia; hoje, o céu não tem luzes...
Cautella, velhinha, não vás tropeçar!
Os ventos entoam cantigas funestas,
Relampagos tingem de vermelho o Azul!
Aonde irá ella, n'uma noite d'estas,
Com vento da Barra puxado do sul?
Aonde irá ella, pastores! boieiras!
Aonde irá ella, n'uma noite assim?
Se for un phantasma, fazei-lhe fogueiras,
Se for uma bruxa, queimae-lhe alecrim!
Contava-me aquella que a tumba já cerra,
Que Nossa Senhora, quando a chama alguem,
Escolhe estas noites p'ra descer á Terra,
Porque em noites d'estas não anda ninguem...
Além, na tapada das Quatorze Cruzes,
Que linda velhinha que vem a passar!
E que olhos aquelles que parecem luzes!
Quaes velas accezas que a vêm a guiar...
Que pobre capinha que leva de rastros,
Tão velha, tão rôta! Que triste viuvez!
Mas se lhe dá vento, meu Deus! tantos astros!
É o céu estrellado vestido do envez...
Seu alvo cabello, molhado das chuvas,
Parece uma vinha de luar em flor...
Oh cabello em cachos, como cachos de uvas!
So no céu ha uvas com aquella cor...
A luz dos seus olhos é uma luz tamanha
Que ao redor espalha divino clarão!
Parece que chove luar na montanha...
Que noite de inverno que parece verão!
Além, na tapada das Quatorze Cruzes,
Velhinha tão alta que vem a chegar!
Parece uma Torre côada de luzes!
Ou antes a Torre de Marfim, a andar!
Não! Não é uma Torre côada de luzes,
Nem antes a Torre de Marfim, a andar,
Que pela tapada das Quatorze Cruzes,
N'uma noite destas, eu vejo passar...
Tambem não é, ouve, minha velha ama!
Como tu contavas, a Virgem de Luz:
Digo-te ao ouvido como ella se chama,
Mas guarda segredo, que é...
- Jezus! Jezus!
2
Além, na tapada das Quatorze Cruzes,
Já não é a velhinha que vae a passar:
Um grande cortejo cheiinho de luzes,
Anninhas da Eira que vae a enterrar.
Falla d'um pastor:
«Anninhas da Eira! Anninhas da Eira!
Cantae, raparigas, cantae e chorae!
Morreu, coitadinha! sorrindo, trigueira,
Como um passarinho, sem soltar um ai.
Quando era pequeno, levava-me á escola,
E quando, mais tarde, cresci e medrei,
Oh danças nas eiras, ao som da viola!
Nas danças de roda, que beijos lhe dei!
Os annos vieram, os annos passaram,
Meu fado arrastou-me, da aldeia sai:
Nunca mais meus olhos seus olhos tocaram,
Perdi-a de todo, nunca mais a vi...
E além, na tapada das Quatorze Cruzes,
N'uma noite d'estas com vento a ventar,
Ó meu Deus! é ella que vae entre luzes!
Ó meu Deus! é a Anninhas que vae a enterrar!
Olá! bons senhores, vestidos de preto,
Deixae a defunta, que a levarei eu!
O suor alagava-vos, eu levo o carreto...
O caixão de Anninhas é tambem o meu!
Tenho os relampagos, deixae-me sem velas
A rezar por ella, sob o temporal!
Cai-me no peito, cravae-m'as, procellas!
Cruzes da tapada, em forma de punhal!»
Mas os bons senhores, de preto vestidos,
Cigarros accezos, e velas na mão,
Lá passam ao vento, com sete sentidos,
Com medo que, ás vezes, não seja um ladrão...
«Mãos das ventanias! mãos das ventanias!
Tirae-lhes a Anninhas e levae-a a Deus!
Com suas mãosinhas, agora tão frias,
Irá na viagem a dizer-me adeus...
Ó vento que passas! corcel de rajada!
Assenta-nos ambos no mesmo selim:
Quero ir mais ella na longa jornada...
Quero ir com Anninhas pelo céu sem fim!
Ó Leste, que trazes as rolas, ás costas,
Quaes rolas, leva-nos aos pés do Senhor!
Quero ir como ella, assim de mãos postas...
Quero ir com Anninhas para onde ella for!
Ó Norte dos Marços! ó Sul das procellas,
Levae-nos quaes brigues, como azas, levae!
Levae-nos como aguias, levae-nos quaes velas...
Quero ir com Anninhas para onde ella vae!»
3
Além, na tapada das Quatorze Cruzes,
Que triste velhinha que vae a passar!
E que olhos aquelles que parecem luzes...
Aonde irá ella? Quem irá buscar?
António Nobre, in 'Só'
Obra que consagrou o seu autor, António Nobre, como um marco da literatura portuguesa na transição da poesia parnasiana, decadentista e neo-romântica para a poesia moderna. Este livro de poesia melancólica, em que o autor exprime o seu sofrimento e a sua dor, e no qual se destacam o fatalismo, o egotismo, o pessimismo, a exploração do macabro e as saudades da infância e da pátria, foi editado em Paris por Léon Vanier (o editor de simbolistas como Verlaine, Rimbaud, Mallarmé), em 1892, aquando da conclusão dos estudos universitários do autor, na Sorbonne. Acolhendo reacções opostas em Portugal, seria objecto de uma segunda edição, corrigida pelo autor, em 1898.
O volume gerou, desde o momento da sua publicação, pelo seu tom confessional, uma precipitada identificação entre autor e sujeito poético, numa correlação adensada pela omnipresença de um eu que reitera a sua perdição, a sua imagem de poeta amaldiçoado, a sua visceral melancolia.
Ungida, aquando desta reedição, como modelo de uma estética romântica reinventada no fim-de-século, tornar-se-ia, como o póstumo Primeiros Versos, um "breviário de almas desfalecidas, da legião melancólica e neurasténica dos que perderam a fé" (cf. BRANDÃO, Júlio - prefácio a Primeiros Versos, 2.ª ed., Porto, 1937).
Com efeito, Só dava voz a um pessimismo de fim-de-século que, adensado, no caso português, por um vencidismo adensado por uma humilhação histórica, eivava uma atmosfera decadentista vagamente melancólica de um Portugal perdido, saudosamente entrevisto nas páginas de Garrett ("Garrett da minha paixão") ou num Portugal da infância, duplamente amado na distância do exílio e do tempo.
Ao lado desta aparência de lirismo ingénuo, passava a profunda inovação poética de Só que, conciliando singularmente rigor métrico e coloquialismo, pulverizando um sujeito poético que narcisicamente se ficciona nas imagens fragmentárias da memória, faria dele um precursor do modernismo, com visíveis nexos de continuidade, por exemplo, em Mário de Sá-Carneiro.
Legenda:
Foto da Velhinha: do blog Lusibero (clicar)
Outras imagens: Google
{O Poema não obedece ao Acordo Ortográfico}
4 comentários:
Boa lembrança esta sua! O "Só" de António Nobre e os idosos que tenho vindo a aprender a repensar mais e mais.
Boa noite.
Estou lhe seguindo e voltarei depois, para ler com mais calma.
Um abraço.
Maria Auxiliadora (Amapola)
César, perdoa esta achega, pois tinha-me perdido no recordar do poema"VELHINHA".
Se leres o soneto"Não repararam nunca?Pela aldeia,/(...)o poeta exprime a grande verdade do SIMBOLISMO, que vai encontrar eco em CAMILO PESSANHA.Ao lermos o soneto, chegam aos nossos ouvidos as vozes dos maiores escritores do tempo: EÇA, RAMALHO, ANTERO, OLIVEIRA MARTINS, MALLARMÉ, MORÉAS, GUERRA JUNQUEIRO, VERLAINE , EUGÉNIO DE CASTRO,
RIMBAUD e tantos outros que nem os recordo...Mas bem se importava ele com o que os outros apregoavam!
Sem querer, absorvia as influências, mas o seu egotismo, o seu temperamento curvado sobre os fantasmas interiores, o seu fecho ao mundo exterior...não facultavam a sua expansividade.
Perdoa, César, escreves muito bem, é claro!mas dei essa matéria ainda tanto tempo que me faltava dizer-te isto...que não tem importância nenhuma, aliás...
Beijo
Mª ELISA
Perdoa, César, escreves muito bem, é claro!
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